domingo, 13 de dezembro de 2020

No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é.

Que é ser indio? E asturiano? E eonaviego? Español, galego, celta, vaqueiro, xitano...? Podera parecer fácil de responder, mas non poucas veces entramos nestos debates. Aquí, neste blogue, nel asturinismo... Somos españoles? Si?, non? Quen lo diz? Contas veces discutimos sobre a realidade identitaria/étnica del Eo-Navia? Máis alá de discutir a nosa asturianía/galeguidade, hai un ser eonaviego?

Das identidades, concretamente da identidade indíxena nel Brasil, é del que nos fala Eduardo Viveiros de Castro (professor
de Antropoloxía nel Museo Nacional de Río de Xaneiro, especialista en etnografía brasileira) nun artículo ben interesante que el meu amigo Quique Roxíos me pasou en PDF e eu vou compartir neste blogue.

Recordo que daquén (pero non recordo quen) dixera que antias naide quería ser vaqueiro, mas agora todo el mundo que ser vaqueiro. Outro tanto poderamos dicir de outras realidades, por caso, el recurrente debate da non-xitanidade de Rosalía (e el non recurrente caso de Isabel Pantoja, que podería entrar nel mesmo saco). Despois da vergonza por falar galego/asturiano/caló..., por séremonos aldeanos/vaqueiros/xitanos...  aparece úa especie de revival das nosas identidades que non deixa de caer núa certa «a banalização da idéia e do rótulo de “índio”», seña en forma de flamenco que oculta aos xitanos, de iogures vaqueiros (ou vodas vaqueiras, ou comarcas vaqueiras que chegan hasta Ḷḷuarca) que non revirten nada na poboación vaqueira, de comarcas e parques históricos feitos con criterios turísticos (a museización del territorio e da xente), e en castelán e inglés, por suposto e un largo etcétera que resulta, efectivamente, núa banalización das nosas identidades, que las dilúen, en realidade, nun mundo globalizante.

Pero esta disertación non responde a pergunta. Qué é ser indio/asturiano/eonaviego/etc? Apesar de parecer úa perogrullada, falamos de ser parte dúa comunidade, xa que «há indivíduos
indígenas porque eles são membros de comunidades indígenas, e não o
inverso». Nel contexto americano podera ser fácil definir quen é indíxena, con criterios xenéticos, pudendo afirmar que é indíxena aquel que non é descendente de europeos. Mas el mundo non é, aínda menos mal, úa balsa de aceite estable, nel que nada muda e todo permanece, e nel Brasil el mestizaxe é úa realidade. Élo tamén en Europa, élo tamén en Asturias (tamén nel Eo-Navia), e nin podemos, nin queremos, nin aceptamos establecer a nosa identidade con criterios raciales. Pero tampouco úa fronteira política é la que debe establecer a nosa identidade (non cabería falar, asina, de xitanos, de vaqueiros, de indios... como non cabería dudar da nosa asturianidade ou da nosa españolidade). As comunidades indíxenas «tinham sido ensinadas a não dizer mais que eram indígenas, ou ensinadas a dizer que não eram mais indígenas», del mesmo xeito que a nosa xente tía sido ensinada a non ser elos mesmos, a deixar a súa lingua, como as galochas, al pé da porta da escola, se querían ser españoles, elo é, ciudadanos de primeira.

É, a identidade, con todo, un constructo que imos fendo e refendo, os poblos constrúinse. Non da nada, por suposto, pero non son realidades estancas, museizables. Un constructo que, sen caer en esencialismos, ten que refer el sou discurso e reinventarse. Penso, por caso, na reinvención e reestruturación del que foi el celtismo, sen medo, xa que «quando se trata dos europeus [con estado propio, añadiría eu], chamamos esse processo de Renascimento. Quando se trata dos outros, chamamos de invenção da tradição»

E que somos nos? Avezados a marcar isoglosas (lingüísticas, de xugos, de carros, de hurros e cabazos...), e beber das correntes migratorias (daquén pode dudar del asturianía dos fillos dos coreanos?, da xitanidade dos mercheros?, da eonavieguidade dos vidos e os idos?), Os indios, como os asturianos, «constituem-se em sujeitos coletivos de direitos coletivos. O “índio” deu lugar à “comunidade” (um dia vamos chegar ao “povo” – quem sabe)» unidos por úa cultura, un xeito de fer as cousas... mas «a relação com esse fundo cultural não é uma relação necessária (embora
possa ser suficiente – e olhe lá ) para “se definir” o que é índio».

Entós, quen é indio? Condo falamos, por caso, de qué territorios son, neste Reino, considerables naciois, ou que comunidades sen territorio son considerables como poblo, «todo
mundo é índio, exceto quem não é. Acho que o problema é “provar” quem não é índio». Nese sentido, non ten xeito fer úa lista de quen si e quen non. Se Castelao falaba de cuatro naciois na República (galega, vasca, catalana e un totum revolutum que sería a española), hoi non poucos defende a condición de nación de Asturias, pero negándolla a Cantabria ou Andalucía, Pola contra, Viveiros de Castro recórdanos «o célebre caso dos Lumbee [povo que vive no estado de Carolina do Norte; reconhecidos apenas em 1956 como índios, ainda lutam para conquistar direitos e benefícios] ou o mais recente dos Mashpee. Coisa muito parecida com o que ocorre aqui». Xa vemos que, al hora de reconocer naciois, mesmo os poblos indíxenas de América tein problemas pra serem reconocidos por outros. Mas, se todos somos indios, naide é indio, Tampouco é cousa de obrar como «o advogado de defesa (aquele que diz, mesmo que não acredite muito nisso: “é
sim, é índio; meu cliente é índio e vou prová-lo”», pra non caer na banalización da que falábamos arriba... Entós, como solucionamos esta cuestión? Eu non teño resposta, quiciabes podades topala lendo a Viveiros de Castro. Eu, chegar, nom chegei a ningúa conclusión, mas si a úas cuantas perguntas. De seguido podedes las palabras de Eduardo Viveiros de Castro.


No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é.

Em 26 de Abril de 2006, Eduardo Viveiros de Castro – professor

de Antropologia no Museu Nacional (RJ) e especialista em

Etnologia Brasileira – esteve no ISA-SP para falar à equipe de

edição do Povos Indígenas no Brasil sobre duas questões

polêmicas: quem é índio? E o que define o pertencimento a

uma comunidade indígena?


“Índio” é qualquer membro de uma comunidade indígena, reconhecido por ela como tal. “Comunidade indígena” é toda comunidade fundada em relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros, que mantém laços histórico-culturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas.

1. As relações de parentesco ou vizinhança constitutivas da comunidade incluem as relações de afinidade, de filiação adotiva, de parentesco ritual ou religioso, e, mais geralmente, definem-se nos termos da concepção dos vínculos interpessoais fundamentais própria da comunidade em questão._

2. Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas compreendem dimensões históricas, culturais e sociopolíticas, a saber:

a) A continuidade da presente implantação territorial da comunidade em relação à situação existente no período pré-colombiano. Tal continuidade inclui, em particular, a derivação da situação presente a partir de determinações ou contingências impostas pelos poderes coloniais ou nacionais no passado, tais como migrações forçadas, descimentos, reduções, aldeamentos e demais medidas de assimilação e oclusão étnica.

b) A orientação positiva e ativa do grupo face a discursos e práticas comunitários derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio relevante do grupo. Em vista dos processos de destruição, redução e oclusão cultural associados à situação evocada no item anterior, tais discursos e práticas não são necessariamente aqueles específicos da área cultural (no sentido histórico-etnológico) onde se acha hoje a comunidade.

c) A decisão, seja ela manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade de se constituir como entidade socialmente diferenciada dentro da comunhão nacional, com autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição (modos de recrutamento e critérios de inclusão de seus membros) e negócios internos (governança comunitária, formas de ocupação do território, regime de intercâmbio com a sociedade envolvente), bem como de definir suas modalidades próprias de reprodução simbólica e material.

(maio, 2005)


Entrevista à equipe de edição, originalmente publicada no livro Povos Indígenas no Brasil 2001/2005.

Começo por dizer que suspeito que nossa entrevista vai ter de abundar em aspas não apenas ou principalmente aspas de citação, mas sobretudo aspas de distanciamento. Isso porque essa discussão – quem é índio?, o que define o pertencimento? etc. – possui uma dimensão meio delirante ou alucinatória, como de resto toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em processo público de acasalamento. Costumam nascer monstros desse processo. Eles são pitorescos e relativamente inofensivos, desde que a gente não acredite demais neles. Em caso contrário, eles nos devoram. Donde as aspas agnósticas. 

A questão que me foi colocada não pára de reaparecer desde que comecei a estudar antropologia, já logo vão 30 anos. Naquela distante época, estávamos sendo acuados pela geopolítica modernizadora da ditadura – era o final dos anos de 1970 –, que nos queria enfiar goela abaixo o seu famoso projeto de emancipação Esse projeto, associado como estava ao processo de ocupação induzida (invasão definitiva seria talvez uma expressão mais correta) da Amazônia, consistia na criação de um instrumento jurídico para discriminar quem era índio de quem não era índio. O propósito era emancipar, isto é, retirar da responsabilidade tutelar do Estado os índios que se teriam tornado não-índios, os índios que não eram mais índios, isto é, aqueles indivíduos indígenas que “já” não apresentassem “mais” os estigmas de indianidade estimados necessários para o reconhecimento de seu regime especial de cidadania o respeito a esse regime, bem entendido era e é outra coisa).  

Foi em reação a esse projeto de desindianizaçãojurídica que apareceramas Comissões Pró-Índio e asAnaís (Associação Nacional de AçãoIndigenista); foi também nesse contextoque se formaram ou consolidaram organizações como o Centrode Trabalho Indigenista (CTI) e oPIB , o “Projeto Povos Indígenas no Brasil” do CEDI (o PIB, como todos sabem está na origem do ISA). Tudo issosurgiu desse movimento, que se constituiuprecisamente em torno da questão de quem é índio – não para responder a essa questão, mas para respondercontra essa questão, pois ela não era uma questão, mas uma resposta uma resposta que cabia “questionar”, ou seja, recusar, deslocar subverter. “Quem vai r respondera essa resposta?”, pergunta o personagem de um filme d deHerzog. Justamente: como r responderà resposta que o Estado tomava como inquestionável em sua questão, a saber: que “índio” era um atributo determinável por inspeção e mencionável por ostensão, uma substância dotada de propriedades características, algo que se podia dizer o que é, e quem preenche os requisitos de tal qüididade – como responder a essa resposta? Pois, a se crer nela, tratar-se-ia apenas de mandar chamar os peritos e pedir que eles indicassem quem era e quem não era índio. Mas os peritos se recusaram a responder a tal resposta. Pelo menos inicialmente.  

Note-se que, naquela época, a questão de saber quem era índio não se cristalizava em torno daquilo que se veio a chamar etnias emergentes, fenômeno bastante posterior: foram tais novas etnicidades, ao contrário, que surgiram da questão, respondendo a ela com uma resposta deslocada, isto é, inesperada. O problema da época, muito ao contrário de qualquer “emergência”, era a submergência das etnias, era o problema das etnias submergentes, daqueles coletivos que estavam seguindo, por força das circunstâncias (isto é um eufemismo), uma trajetória histórica de afastamento de suas referências indígenas, e de quem, com esse pretexto, o governo queria se livrar: “Esse pessoal não é mais índio, nós lavamos as mãos. Não temos nada a ver com isso. Liberem-se as terras deles para o mercado; deixe-se eles negociarem sua força de trabalho no mercado”.  

Nosso objetivo político e teórico, como antropólogos, era estabelecer definitivamente– não o conseguimos; mas acho que um dia vamos chegar lá – que índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de “estado de espírito”. Um modo de ser e não um modo de aparecer. Na verdade, algo mais (ou menos) que um modo de ser: a indianidade designava para nós um certo modo de devir, algo essencialmente invisível mas nem por isso menos eficaz: um movimento infinitesimal incessante de diferenciação, não um estado massivo de “diferença” anteriorizada e estabilizada, isto é, uma identidade. (Um dia seria bom os antropólogos pararem de chamar identidade de diferença e vice-versa.) A nossa luta, portanto, era conceitual : nosso problema era fazer com que o “ainda” do juízo de senso comum “esse pessoal ainda é índio” (ou “não é mais”) não significasse um estado transitório ou uma etapa a ser vencida. A idéia é a de que os índios “ainda” não tinham sido vencidos, nem jamais o seriam. Eles jamais acabar(i)am de ser índios, “ainda que”... Ou justamente porquê. Em suma, a idéia era que “índio” não podia ser visto como uma etapa na marcha ascensional até o invejável estado de “branco” ou “civilizado”.

Da emancipação à reindianização.


Mas a filosofia da legislação brasileira era justam ente essa: todos os índios

“ainda” eram índios, no sentido de que um dia iriam, porque deviam, deixar de

sê-lo. Mesmo os que estavam nus no mato, com seus proverbiais cocares de

plumas, seus colares de contas, seus arcos, flechas, bordunas e zarabatanas,

os índios com “contato intermitente” ou os “isolados” – mesmo esses ainda

eram índios. Apenas ainda; ou seja, ainda, apenas, porque ainda não eram não-

índios. O objetivo da política indigenista de Estado era gerenciar (e, por que

não?, acelerar) um movimento visto como inexorável (e, por que não?,

desejável): o célebre “processo histórico”, artigo de fé comum aos mais

variados credos modernizadores, do positivismo ao marxismo. Tudo o que se

“podia fazer” era garantir – isso para os mais bem-intencionados – que o

“processo” não fosse demasiado brutal. Mas, de uma forma ou de outra,

entendia-se que a almejada o melete nacional só poderia ser feita, bem, sabe-

se como.

A luta contra o projeto de emancipação levou as pessoas que estavam do lado

dos índios a se preocuparem com recenseamentos, levantamentos, com

informação, com organização, comunicação e propaganda. Tratava-se, em

suma, de tornar a questão visível. No fundo, não deixou de ser uma sorte os

generais e coronéis da época terem tentado desindianizar uma porção de

comunidades indígenas, pois isso, na verdade, terminou foi por reindianizá-las.

A atabalhoada tentativa da ditadura de legiferar sobre a ontologia da

indianidade “desinvisibilizou” os índios, que eram virtualmente inexistentes

como atores políticos nas décadas de 1 960 e 1970. Eles só apareciam, de vez

em quando, em alguma reportagem colorida sobre o Xingu, geralmente como

ilustração do admirável trabalho dos irmãos Villas Bôas (digo admirável sem

nenhuma ironia; não deixava de ser bizarro, porém, o fato de que havia nessa

época uma série de jornalistas especializados em embasbacar-se diante dos

Villas Bôas e outros sertanistas). A grita suscitada com o projeto de

emancipação resgatou a questão indígena do folclore de massa a que havia

sido reduzida. Ela fez com que os próprios índios se dessem conta de que, se

eles não tomassem cuidado, iam deixar de ser índios mesmo, e rapidinho.

Graças a isso, então e enfim, os índios se tornaram muito mais visíveis como

atores e agentes políticos no cenário nacional. Os primeiros líderes indígenas

de expressão supralocal surgiram nesse contexto, como Mário Juruna e Aílton

Krenak.

A questão de quem é ou não é índio reaparece agora, mas por outras razões.

Algumas pessoas ligadas à questão indígena têm por vezes a impressão (ou

pelo menos eu tenho a impressão de que elas têm a impressão) de que nós, índios e antropólogos, fomos um pouco vítimas de nosso próprio sucesso.

Antigamente, muitos coletivos indígenas sentiam vergonha de sê-lo, e o

governo tinha todo interesse em aproveitar essa vergonha inculcada

sistemicamente, tirando as conseqüências jurídico- políticas, digamos assim,

do eclipsamento histórico da face indígena de várias comunidades

“camponesas” do país. Agora, ao contrário, “todo mundo quer ser índio” –

dizemos, entre intrigados e orgulhosos. Talvez mais intrigados que orgulhosos.

Antigamente, os especialistas no “processo histórico” martelavam-nos os

ouvidos com o dogma de que a “condição camponesa” (com opção de

“proletarização”) era o devir histórico inexorável e portanto a verdade das

sociedades indígenas, e que a descrição dessas sociedades como entidades

socioculturais autônomas supunha um “modelo naturalizado” e “a-histórico”.

Mas eis que, pouco a pouco, os índios começam a reivindicar e terminam por

obter o reconhecimento constitucional de um estatuto diferenciado

permanente dentro da chamada “comunhão nacional”; eis que eles

implementam ambiciosos projetos de retradicionalização marcados por um

autonomismo “culturalista” que, por instrumentalista e etnicizante, não é

menos primordialista nem menos naturalizante; eis, por fim, que algumas

comunidades rurais situadas nas áreas mais arquetipicamente “camponesas”

do país reassumem sua condição indígena, em um processo de transfiguração

étnica que é o exato inverso daquele anunciado, nos idos de 1970, por Darcy

Ribeiro no célebre Os índios e a civilização, em profecia acreditada, com um

retoque ou outro, pela maioria dos antropólogos.


Do indio à comunidade (1)

Com a constituição de 1988, o jogo terminou de virar completamente. De fato,

houve uma inversão de 180 graus em relação ao projeto de emancipação. O

propósito explícito desse projeto era emancipar indivíduos, mas seu verdadeiro

objetivo, como se sabe, era o de “liberar” comunidades inteiras. Com a

Constituição, consagrou-se o princípio de que as comunidades indígenas

constituem-se em sujeitos coletivos de direitos coletivos. O “índio” deu lugar à

“comunidade” (um dia vamos chegar ao “povo” – quem sabe), e assim o

individual cedeu o passo ao relacional e ao transindividual, o que foi,

desnecessário enfatizar, um passo gigantesco, mesmo que esse transindividual

tenha precisado assumir a máscara do supra-individual para poder figurar na

metafísica constitucional, a máscara da Comunidade como Super-Indivíduo.

Mas de qualquer modo o individual não podia deixar de ceder ao relacional,

uma vez que a referência indígena não é um atributo individual, mas um

movimento coletivo, e que a “identidade indígena” não é “relacional” apenas

“em contraste” com identidades não-indígenas, mas relacional (logo, não é

uma “identidade”), antes de mais nada, porque constitui coletivos transindividuais intra-referenciados e intra-diferenciados. Há indivíduos

indígenas porque eles são membros de comunidades indígenas, e não o

inverso.

Pois bem. Foi a partir desse momento que se acelerou a “emergência” de

comunidades indígenas que estavam submersas por várias razões: porque

tinham sido ensinadas a não dizer mais que eram indígenas, ou ensinadas a

dizer que não eram mais indígenas; porque tinham sido colocadas em um

liquidificador político-religioso, um moedor cultural que misturara etnias,

línguas, povos, regiões e religiões, para produzir uma massa homogênea capaz

de servir de “população”, isto é, de sujeito (no sentido de súdito) do Estado.

Como se sabe, as antigas missões que estão na origem de tantas cidades,

vilas, vilarejos e arraiais do interior do Brasil foram os lugares privilegiados

dessa fabricação do componente indígena do “povo brasileiro”, ao sintetizar os

célebres índios genéricos, os índios de aldeamento, catecúmenos do

sacramento estatal da transubstanciação étnica: a comunhão nacional... A

Constituição de 1988 interrompeu juridicamente (ideologicamente) um projeto

secular de desindianização, ao reconhecer que ele não se tinha completado. E

foi assim que as comunidades em processo de distanciamento da referência

indígena começaram a perceber que voltar a “ser” índio – isto é, voltar a virar

índio, retomar o processo incessante de virar índio – podia ser interessante.

Converter, reverter, perverter ou subverter o dispositivo de sujeição armado

desde a Conquista de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação; deixar de

sofrer a própria indianidade e passar a gozá-la. Uma gigantesca ab-reação

coletiva, para usarmos velhos termos psicanalíticos. Uma carnavalização

étnica. O retorno do recalcado nacional.


A explosão da indianidade.

A partir daquele momento – que é ainda o momento em que estamos vivendo –

e daquilo que ganhou um ímpeto irresistível a partir dele, a saber, a re-

etnização progressiva do povo brasileiro, a questão “quem é índio?” deixou de

se colocar em vista do fim mais ou menos inconfessável que o Estado se

colocava, o de violentar os direitos das comunidades e das pessoas indígenas.

Ela passou a ser um problema daqueles que se pensam do (e que pensam ao)

lado dos índios, bem como um problema dos “próprios” índios.

Qual o problema hoje? Isto é, como aparece o problema hoje? Ele aparece

como sendo o de evitar a banalização da idéia e do rótulo de “índio”. A

preocupação é clara e simples: bem, se “todo mundo” ou “qualquer um” (qualquer coletivo) começar a se chamar de índio, isso pode vir a prejudicar os

“próprios” índios. A condição de indígena, condição jurídica e ideológica, pode

vir a “perder o sentido”. Esse é um medo inteiramente legítimo. Não

compartilho dele, mas o acho inteiramente legítimo, natural, compreensível,

como acho legítimo, natural etc. o medo de assombração. Enfim... O raciocínio

é: se, de repente, nós tivermos que “reconhecer como tal” toda comunidade

que se reivindica como indígena perante os distribuidores autorizados de

identidade (o Estado), aí quem vai acabar se dando mal são os Yanomami, os

Tukano, os Xavante, todos os “índios de verdade”. Poderá haver uma

desvalorização da noção de índio. Se, antes, ser índio custava caro (para

evocar um artigo pioneiro de Roberto DaMatta: “Quanto custa ser índio no

Brasil?”), e custava caro, é claro, para quem o era, hoje ser índio estaria

ficando barato demais. Agora é fácil ser índio; basta dizer... E daí ninguém,

principalmente o Estado, vai acabar comprando essa.

Não acredito nisso. Muito mal comparando – e digo mal porque a comparação

arrisca reavivar velhos e grotescos estereótipos –, pode-se dizer que ser índio é

como aquilo que Lacan dizia sobre o ser louco: não o é quem quer. Nem quem

simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante.


Os antropólogos e a garantia da identidade.

Pois é: os antropólogos querem, justamente, garantir essa identidade indígena.

Só que não garantem; só o índio é quem se garante. O papel dos antropólogos

nessa questão é um tantinho confuso. A comunidade antropológica, por via de

suas ABAs (Associação Brasileira de Antropologia) e similares, desempenhou

um papel fundamental na de cisão de botar o pé na porta e impedir o projeto

de emancipação, decisão tomada em conjunto com outros advogados da causa

e, naturalmente, com os índios. Eu acho que esse momento, em 1978, foi um

dos claros e raros momentos em que, de fato, os antropólogos fizeram uma

diferença. Uma tremenda diferença. Não foi um antropólogo ou dois, como foi

Darcy Ribeiro no tempo do Estatuto do Índio, ou os irmãos Villas-Boas – que por

vezes foram chamados de antropólogos, durante a criação do Parque do Xingu

–, mas os antropólogos “ como um todo”, enquanto coletividade, que fizeram

uma tremenda diferença nesse momento. O mesmo se diga da mobilização em

torno da Constituinte de 1988. Depois, minha impressão é que a coisa mudou

um pouco. “Os antropólogos” deixou de ser um plural coletivo, e passou a um

plural distributivo: os antropólogos são aquelas pessoas que fazem laudo, os

peritos. Peritos em identidade. Alheia. Bem, nem todos. Em todo o processo de juridificação da questão “quem é índio?”, isto é, de

decidir como e onde aplicar os artigos da Constituição de 1988, a antropologia

conseguiu, a meu ver com toda a justiça, esse ganho político de se tornar um

interlocutor legítimo do aparelho d e Estado, parte necessária nos processos

jurídicos de garantia e de oficialização das demarcações de terra, entre outras

coisas. Mas com isso o antropólogo (releve-se-me o masculino) passou também

a ter uma atribuição que, a meu ver, é complicada (releve-se-me o

eufemismo). Ele passou a ter o poder de discriminar quem é índio e quem não

é índio, ou antes, a prerrogativa de pronunciar-se com autoridade sobre a

matéria, de modo a instruir a instância que tem realmente tal poder de

discriminação, o Poder Judiciário. Ainda que o antropólogo diga sempre ou

quase sempre que fulano é índio, que aqueles caboclos da Pedra Preta são, de

fato, índios, pouco importa. O problema é que o antropólogo está “em posição

de” dizer quem não é índio, dizer que alguém não é índio. E pode fazê-lo.

De qualquer maneira, o fato de se sentir autorizado a responder já situou, de

saída, o antropólogo em algum lugar entre o juiz (afinal, o perito é aquele que

diz sim ou não, que constata-atesta que alguém é ou não é alguma coisa) e o

advogado de defesa (aquele que diz, mesmo que não acredite muito nisso: “é

sim, é índio; meu cliente é índio e vou prová-lo”).


O antropólogo e o jurista.

Tudo ótimo, normal e democrático. Mas a questão continua colocada nos

termos de sempre: continua uma questão de se dizer quem é o quê. É sem

dúvida difícil ignorar a questão, uma vez que o Estado e seu arcabouço

jurídico-legal funcionam como moinhos produtores de substâncias, categorias,

papéis, funções, sujeitos, titulares desse ou daquele direito etc. O que não é

carimbado pelos oficiais competentes não existe – não existe porque foi

produzido fora das normas e padrões – não recebe selo de qualidade. O que

não está nos autos etc. Lei é lei etc. E afinal de contas, é preciso administrar a

nação; é preciso gerir a população, e o território. Como se diz.

Mas há quem diga que o papel do antropólogo não é, nunca foi e jamais

deveria ser o de dizer quem é índio e quem não é índio. Que isso é coisa de

inspetor da alfândega, de fiscal da identidade alheia. Essa é uma posição

pessoal minha (e como seria outra coisa, afinal?), conseqüência da dificuldade

que sinto de enunciar juízos do tipo “esses caras são índios” ou “esses caras

não são índios”. O problema, para mim, é a legitimidade da pergunta. Não

aceito essa pergunta como sendo uma pergunta antropológica. Ela não é uma pergunta antropológica , é uma pergunta jurídica. Oh não, ela é uma pergunta

essencialmente , fundamentalmente, visceralmente política, obtemperarão

meus argutos colegas. Mas é claro que é uma pergunta política, replicarei. E

minha resposta política a ela é dizer que ela não é uma questão antropológica,

mas uma questão jurídica, e de que é aqui que se distingue o antropólogo do

jurista: no tipo de pergunta que eles têm “o direito” de fazer e, portanto, de

responder.

Naturalmente que o antropólogo também pode responder, ou ajudar a

responder perguntas jurídicas, e que ele é por vezes compelido a se colocar

imaginariamente (ou taticamente) na posição de Legislador, quando não na de

Conselheiro do Príncipe. Ainda que... Bem, em algumas situações ele é

obrigado mesmo a responder, por exemplo, quando as perguntas são feitas em

relação ao povo junto a quem ele trabalha, às pessoas com as quais ele tem

relações reais, os membros da comunidade ou com unidades das quais ele

antropólogo é parte componente e interessada, mesmo que uma parte à parte.

Mesmo que seja uma parte separada, que mora longe, ele é sempre parte da

comunidade. Querendo ou não. Pode ser uma parte renegada, uma parte

traidora, uma parte distante, uma parte longínqua, mas é parte. E enquanto

tal, é claro que ele tem que responder às perguntas que o Estado lhe “propõe”,

porque ele está lá para isso mesmo, para entrar na briga. Mas não devemos

por isso imaginar que todas as questões com que o antropólogo se defronta

sejam por isso questões antropológicas, questões que ele naturalmente pode e

deve responder, e deve se responsabilizar por isso. Responsabilizar-se, isto é,

responder pela resposta. Pois no fim das contas, acho que ninguém tem o

direito de dizer quem é ou quem não é índio, se não se diz (porque é) índio ele

próprio. E é justamente por isso que o antropólogo só pode responder, se lhe

perguntam se o povo ou comunidade de que ele escolheu ser parte é, de fato ,

indígena, pela afirmativa. Essa resposta afirmativa não responde à pergunta

que lhe foi feita. Obviamente.

Em suma, para o antropólogo, índio é como freguês – sempre tem razão. O

antropólogo não está lá para arbitrar se as pessoas que lhe hospedam e cuja

vida ele escarafuncha têm ou não razão no que dizem. Ele está lá para

entender como é que aquilo que elas estão dizendo s e conecta com outras

coisas que elas também dizem ou disseram, e assim por diante. Ao antropólogo

não somente não cabe decidir o que é um a comunidade indígena, que tipo de

coletivo pode ser chamado de comunidade indígena, como cabe, muito ao

contrário, mostrar que esse tipo de problema é indecidível.


Todo mundo é índio, exceto quem não é.

Permitam-me incorrer em um exagero heurístico. Eu direi que no Brasil todo

mundo é índio, exceto quem não é. Acho que o problema é “provar” quem não

é índio no Brasil. Resposta política à resposta (isto é, à pergunta) política que

se oferece ao antropólogo.

Comecemos por algum começo. Entendo que a questão d e quem é ou quem

não é índio, de saída, não é uma questão de “cultura”, isto é, uma questão

respondível mediante a inspeção dos conteúdos culturais da vida de um

coletivo. Não estou negando, obviamente, que haja um fundo cultural

ameríndio muito vivo e muito real; um fundo, ou por outra, uma forma, uma

estrutura ou conjunto de estruturas (para usarmos uma palavra fora de moda)

conceituais que remontam à América pré-colombiana. O que eu estou dizendo

é que a relação com esse fundo cultural não é uma relação necessária (embora

possa ser suficiente – e olhe lá ) para se definir o que é índio. Porque uma vez

que se recusa a pergunta, o fundo cultural não pode mais servir para definir

pertenças e inclusões em classes identitárias. Esse fundo cultural é um

elemento da história do país, do continente, das três Américas. Os coletivos

humanos contemporâneos espalhados por nosso continente se orientam de

modos variados em relação a esse fundo; nenhum desses modos é redutível ao

modo emanativo, pois um coletivo humano não é jamais a encarnação de uma

cultura; não porque seja mais que isso, mas porque é outra coisa.

E assim eu inverto a questão. O problema é quem não é índio. (Essa afirmação

se insere em uma teoria do minoritário que devo a outrem, e que não cabe

expor aqui. Mas para bom entendedor, eis como posso afirmar que no Brasil

todo mundo é índio, exceto quem não é). Darcy Ribeiro, aliás – não sei se ele

diz exatamente isso, não sou bom leitor dele –, insistiu com eloqüência sobre o

fato de que o “povo brasileiro” é muito mais indígena do que se suspeita ou

supõe. (Não estou com isso, desnecessário dizer, minimizando o aporte óbvio e

gigantesco das populações africanas trazidas à força para cá.) O homem livre

da ordem escravocrata, para usar a linguagem da Maria Silvia Carvalho Franco,

é um índio. O caipira é um índio, o caiçara é um índio, o caboclo é um índio, o

camponês do interior do Nordeste é um índio. Índio em que sentido? Ele é um

índio genético, para começar, apesar de isso não ter a menor importância.


O genético e o genérico.

Os pesquisadores da UFMG que fizeram um levantamento do aporte genético

ameríndio na população nacional descobrira m que ele é muito maior do que se imaginava. Coisa de 33%, creio. Afinal de contas, então, o fluxo gênico

ameríndio continua a correr solto. Interessante, mas isso não tem a menor

importância, exceto pelo que pode ajudar a esclarecer sobre a história “do

Brasil”. Digo que os coletivos caiçaras, caboclos, camponeses e índios são

índios (e não 33% índios) no sentido de que são o produto de uma história,

uma história que é a história de um trabalho sistemático de destruição cultural,

de sujeição política, de “exclusão social” (ou pior, de “inclusão social”),

trabalho esse que é propriamente interminável. Não é possível fazer todos os

brasileiros deixarem de ser índios completamente. Por mais bem sucedido que

tenha sido ou esteja sendo o processo de desindianização levado a cabo pela

catequização, pela missionarização, pela modernização, pela cidadanização,

não dá para zerar a história e suprimir toda a memória, porque os coletivos

humanos existem crucial e eminentemente no momento de sua reprodução, na

passagem intergeracional daquele modo relacional que “é” o coletivo, e a

menos que essas comunidades sejam fisicamente exterminadas, expatriadas,

deportadas, é muito difícil destruí-las totalmente. E ainda quando o foram,

quando foram reduzidas a seus componentes individuais, extraídos das

relações que os constituíam, como aconteceu com os escravos africanos, esses

componentes reinventam uma cultura e um modo de vida – um mundo

relacional que, por constrangido que tenha si do pelas condições adversas

onde vicejou, jamais deixou de ser uma expressão da vida humana exatamente

como qualquer outra. Não há culturas inautênticas, pois não há culturas

autênticas. Não há, aliás, índios autênticos. Índios, brancos, afro-descendentes,

ou quem quer que seja – pois autêntico não é uma coisa que os humanos

sejam. Ou talvez seja uma coisa que só os brancos podem ser (pior para eles).

A autenticidade é uma autêntica invenção da metafísica ocidental, ou mesmo

mais que isso – ela é seu fundamento, entenda-se, é o conceito mesmo de

funda mento, conceito arquimetafísico. Só o fundamento é completamente

autêntico; só o autêntico pode ser completamente fundamento. Pois o

Autêntico é o avatar do Ser, uma das máscaras utilizada pelo Ser no exercício

de suas funções monárquicas dentro da onto-teo-antropologia dos brancos.

Que diabo teriam os índios a ver com isso?


Tornar-se índio: um problema para o judiciário?

Mércio Gomes, ex-presidente da Funai (entre 2003 e 2007), falou como falavam

(como eram feitos falar por seus chefes) os presidentes da Funai de ontem

[referência à matéria publicada no Estadão de 13/01/06, na qual Mércio alegou

que o Supremo Tribunal Federal terá de definir um “limite” para as

reivindicações cada vez mais “excessivas” por novas Terras Indígenas; este

comentário, como de se esperar, gerou indignação em muitos setores

indigenistas]. Só que agora não é mais porque tem muito índio que “não é mais índio”, mas porque tem muito branco que “nunca foi índio” querendo “virar

índio”. Quando seria melhor dizer: tem muito branco, que nunca foi muito

branco porque já foi índio, querendo virar índio de novo.

Mas isso é sentido como um escândalo, no fundo; é o mundo de cabeça para

baixo e de trás para frente. Pois é como não se pudesse – e pudesse no sentido

lógico, não apenas no sentido moral – querer virar índio, só se pudesse querer

deixar de sê-lo. É como se querer “virar índio” fosse uma contradição em

termos; só se pode desvirar. De qual quer modo, já tem índio demais por aqui;

e aliás, os índios têm terras demais. O Brasil ficaria melhor e maior com menos

índios: só com os que existem hoje, por exemplo. Sejamos liberais: não é

preciso matar ninguém; os índios que temos são bons; são mesmo necessários.

Mas, sobretudo, eles são suficientes. Vamos fechar a porteira. Vamos fazer uma

escala. Índio mesmo é só índio isolado; voltemos às famosas categorias, cuja

intenção de marcar etapas temporais é evidente: isolado, contato intermitente,

contato permanente e integrado. Onde vai passar o corte? Na cara de quem vai

se fechar a porteira? Integrado já não é mais índio; fácil essa. E os de contato

intermitente? Que freqüência de intermitência faz de um intermitente um

integrado (como quem diz, de um usuário ocasional em um viciado)? Dezesseis

horas por dia? Bem, o índio isolado ninguém tem coragem de dizer que não é

mais índio, sobretudo porque ele nem é índio ainda. Ele não sabe que é índio;

não foi contatado pela Funai ou coisa do gênero. Ou seja, primeiro se tem que

virar índio para depois deixar de ser. Por que então não se pode querer virar de

novo depois de deixar de ser? Ou quem sabe voltar a nunca ter sido, mas nem

por isso insistindo menos em ser?


Fechando a lista.

O Mércio disse a mesma coisa que os governos da ditadura. Em essência, ele

disse que tem índio demais. Essa coisa de fechar a lista aconteceu nos Estados

Unidos, por exemplo. Em um dado momento definiram arbitrariamente quem

eram os índios. Só que lá, sendo aquele o país que é, os índios da lista vão ser

índios para sempre. E não obstante, essa lista nunca fecha completamente.

Não faz muito tempo que certas comunidades reivindicaram uma indianidade

deixada de fora da lista, e outras continuam a fazê-lo... Tome-se o célebre caso

dos Lumbee [povo que vive no estado de Carolina do Norte; reconhecidos

apenas em 1956 como índios, ainda lutam para conquistar direitos e

benefícios] ou o mais recente dos Mashpee. Coisa muit o parecida com o que

ocorre aqui. Enfim, tenho a impressão de que é isso que o Mércio queria fazer. Uma lista,

para poder dizer depois: a lista fechou. Note-se o arbitrário quase burlesco de

uma lista como essa. Por que parar agora e não no mês que vem? Por que não

parou antes? Naturalmente, isso vai provocar uma corrida – acelerar uma

corrida que já está acontecendo – para se registrar como índio. O correto seria

publicar um edital. Abrir concorrência pública. Marcar prazo. A declaração de

Mércio Gomes – supondo-se que ele tenha dito o que se escreveu que ele

disse; mas o povo inventa muito... – é completamente absurda. A Funai é (ou

deveria ser) a representante, no sentido de defensora, das populações

indígenas. Dali seria o último lugar de onde se poderia esperar ser emitido um

juízo como esse. Como o então presidente do chamado órgão tutelar (nem sei

se a Funai “ainda é” isso) pode dizer tal coisa?

Bem, estou apenas fingindo surpresa – infelizmente. A declaração do Mércio foi

a de um estadista. Um pequeno estadista, naturalmente. Com efeito e a rigor,

definir quem é ou não é índio não é um problema dos índios nem de suas

comunidades. Ele é um problema posto e resolvido pelo Estado, instância que

trata os coletivos sob sua tutela (no sentido lato, isto é, político) dessa forma:

quem é o quê, quem não é o quê, é preciso favorecer isso, desencorajar aquilo;

punir, premiar, induzir, reduzir, gerir, dispor. Nós antropólogos temos que nos

posicionar frontalmente contra isso, recusando (“na medida do possível e

dentro dos limites da lei ”) essa questão como legítima.


Do índio à comunidade (2).

Bem, vamos falar então da experiência ficcional a que me dediquei, ao propor

uma definição “jurídica” de “índio”. Tal definição, insisto, é um exercício

escolar. Não se trata de um projeto de lei (imaginem), mas de uma tentativa

despretensiosa de resposta a colegas que acham que a questão de saber quem

e o que é índio pode ter uma resposta outra que aquela que é dada

praticamente pelos índios, passados, presentes e futuros.

Antes de comentar a definição ficcional, quero resumir em algumas frases

obscuras a “linha de raciocínio” que utilizei até a qui e que não vou utilizar

daqui para frente, mas que me parece a única tecnicamente correta. Ela não

deixa de estar contemplada, de certo meta-modo, na terceira dimensão da

definição ficcional. Direi então que índio realmente não é isso que eu digo que

é, nesse texto pseudo-legislativo que escrevi. E não é isso, porque os

enunciados de indianidade são enunciados performativos e não enunciados

constativos, dependendo portanto de condições de felicidade e não de condições de verdade (no sentido de correspondência com um estado de

coisas). Mas, e este é o ponto, as condições antropológicas de felicidade de tal

enunciado não são dadas por terceiros. Sobretudo, não são nem podem ser

dadas pelo Estado, o Terceiro por excelência. A indianidade é tautegórica; ela

cria sua própria referência. Índios são aqueles que “representam a si mesmos”,

no sentido que Roy Wagner dá a esta expressão (cf. The invention of culture),

sentido esse que não tem nada a ver com identidade; e nada a ver, tampouco,

com representação, como está indicado na formulação deliberadamente

paradoxal da expressão. “Representar a si mesmo” é aquilo que faz uma

Singularidade, e o que uma Singularidade faz. Sigamos adiante.

O objeto da definição imaginária que estamos comentando é isso que chamei

de “comunidade indígena”. A expressão foi escolhida por ser a mais vaga

possível. Na verdade não gosto demais da palavra “comunidade”, canonizada

pela teologia da libertação e aproveitada algo espertamente pelos governos

pós-ditadura. Mas no contexto que me dei, ela se justifica por impedir palavras

mais pontiagudas e cheias de arestas, como etnia, tribo, sociedade, nação. A

palavra “coletivo” talvez fosse a mais adequada, mas ela é muito

especializada, pertence ao universo de uma antropologia mais recente, e os

problemas que ela pretende resolver são outros – notadamente, como

contornar-ignorar a oposição natureza/sociedade. Não é disso que se trata

aqui. Então, mantenhamos comunidade.

Em seguida, cometo a húbris de escrever: “comunidade indígena é...”.

Exercício totalmente parnasiano, repito. Pois eu, no fundo do meu coração, não

estou nem aí para saber quem ou o quê é comunidade indígena, ou não é. Se,

“enquanto antropólogo”, eu terminar por esbarrar em um lugar onde, por

acaso, encontram-se índios – com o sentido que a palavra tem na linguagem

comum, que é vago e concreto ao mesmo tempo –, isso não me obriga a, nem

decorre de, nenhuma definição técnica . Quando eu fui estudar os Araweté eu

pensava: “eu quero conhecer uns sujeitos que morem no mato e que usem

arco e flecha”. Pois.

O ponto realmente fundamental na escolha da “comunidade” como sujeito da

minha definição fictícia é que o adjetivo “índio ” não designa um indivíduo, mas

especifica um certo tipo de coletivo . Nesse sentido não existem índios, apenas

comunidades, redes (d)e relações que se podem chamar indígenas. Não há

como determinar quem “é índio” independentemente do trabalho de auto-

determinação realizado pelas comunidades indígenas, isto é, aquelas que são o

objeto do presente exercício definicional, ou melhor, meta-definicional. O

objeto e o objetivo da antropologia, diga-se de passagem, é a elucidação das condições de auto- determinação ontológica do outro. E ponto.

Enfim, voltando ao texto: comunidade indígena é toda comunidade fundada em

relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros. O “ou” aqui é

evidentemente inclusivo: “seja parentesco, seja vizinhança”. Esse é um ponto

importante, porque ele impede uma definição genética ou genealógica de

comunidade. A idéia de vizinhança serve para sublinhar que “comunidade” não

é uma realidade genética; por outro lado, colocar “relações de parentesco” na

definição permite que se contemplem possíveis dimensões translocais dessa

“comunidade”. Em outras palavras, a comunidade que tenho em mente é ou

pode ser uma realidade temporal tanto quanto espacial. Em suma,

“parentesco” e “território”, para falarmos como Morgan, são tomados aqui

como princípios alternativos ou simultâneos de constituição de uma

comunidade. Convém sublinhar o caráter não-geométrico desse território: a

inscrição espacial da comunidade não precisa ser, por exemplo, concentrada

ou contínua, podendo ao contrário ser dispersa e descontínua. Então, (1)

comunidade fundada em relações de parentesco ou vizinhança, e (2) que

mantém laços históricos ou culturais com as organizações sociais indígenas pré

-colombianas.

Introduzo a esta altura a primeira especificação:

1. As relações de parentesco ou vizinhança, constitutivas da comunidade,

incluem relações de afinidade, de filiação adotiva, de parentesco ritual ou

religioso – quer dizer, compadrio – e, mais geralmente, se definem em termos

das concepções dos vínculos interpessoais fundamentais próprios da

comunidade em questão. Ou seja, em bom português, é parente quem os

índios acham que é parente, e não quem o Instituto Oswaldo Cruz ou sei lá

quem vai dizer que é a partir de um exame de sangue ou um teste de ADN.

Parentesco inclui aqui a afinidade. Isso é básico, em primeiro lugar, porque as

relações de afinidade são, em muitas culturas indígenas, transmissíveis inter-

geracionalmente, exatamente como as relações de consangüinidade (falo dos

sistemas de parentesco ditos “elementares ”); em segundo lugar porque, de

um modo geral, a etnologia vem mostrando que a afinidade é o arcabouço

político e a linguagem ideológica dominante nas comunidades ameríndias. E

por fim, porque há muitos casamentos interétnicos nos mundos indígenas de

hoje. Como você cortaria uma família no meio quando o homem é branco e a

mulher é índia, por exemplo? Se a comunidade acha que o marido é membro

da comunidade, ele é índio, sem mais. No que me concerne, se o marido for

um cidadão lituano, mas casou com a índia Potira, e os pais da índia Potira

estão de acordo, esse lituano é índio. Assim, as relações de parentesco e de

vizinhança incluem laços variados e, sobretudo, se definem em termos da atualização dos vínculos interpessoais fundamentais próprios da comunidade

em questão. Pode não ser o sangue. Pode ser a comensalidade, a vizinhança;

isso fica em aberto. Cada comunidade terá uma concepção específica do que

são esses “vínculos interpessoais fundamentais”, e são essas concepções que

devem ser “definitivas” das comunidades, não as nossas.

2. Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas são

evidentemente importantes, pois é bobagem imaginar que se pode definir

“índio” na base do preguiçoso princípio sub-relativista segundo o qual “índio é

qualquer um que achar que é”. Não é qualquer um; e não basta achar ou dizer;

só é índio, como eu disse, quem se garante. (Por outro lado, são sim parentes

dos índios aqueles que os índios acharem que são seus parentes e ponto final,

pois só os índios podem garantir isso).

É necessário trazer para a definição, portanto, o reconhecimento explícito do

fato de que existia um mundo social pré-colombiano, e de que há uma porção

de gente no Brasil atual que está ligada a ele. O que quer dizer esse “ligada” é

que é o problema, naturalmente. Os laços histórico-culturais com as

organizações sociais pré-colombianas compreendem dimensões históricas,

culturais e sociopolíticas. Não tem de haver uma coincidência dessas três

dimensões. Eu diria que se uma delas está presente, está “resolvido” o

“problema”. Essas condições dimensionais são condições suficientes, cada uma

por si. E nenhuma delas é necessária. Quais são tais condições? Uma delas é a

continuidade da implantação territorial da comunidade em relação à situação

existente no período pré-colombiano. É a idéia do território tradicional, da Terra

imemorial . É impossível não reconhecer a importância disso. Como eu disse,

tal continuidade é suficiente, mas não é necessária.

Não menos suficiente, aliás, é a disposição em conceber a situação presente da

comunidade a partir de determinações e de contingências impostas pelos

poderes coloniais ou nacionais no passado, tais com o migrações forçadas,

descimentos, reduções, aldeamentos e demais medidas de assimilação,

oclusão e repressão étnicas. Em suma, o índio aldeado, o índio que foi

“misturado”, que os missionários e bandeirantes desceram, não pode ser

culpado de ter perdido suas referências territoriais originais. Essas

comunidades vão deixar de ser indígenas porque seus membros foram trazidos

à força de regiões diferentes? – “Bem...desculpem, mas os jesuítas misturaram

vocês com índios de todos os lugares”. – “E daí (responde o índio), a culpa é

minha? Eu vou ser punido por causa disso? Quero minha terra de volta.” – “Mas

já tem muito branco, há muito tempo, nessa terra...” Mas então é preciso

negociar. Pois a antiguidade da expropriação não a faz deixar de sê-lo. O único prazo de validade é a memória. E a memória tem os seus, como se diz, usos

sociais.


Virando índio, virando branco.

A outra coisa é a orientação positiva e ativa dos membros do grupo – este é o

segundo “critério” – face a discursos e práticas comunitários derivados do

fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio coletivo relevante. Se

tomarmos o ponto pela outra ponta, isso quer dizer: ninguém é obrigado a ser

índio. Os membros de uma comunidade podem decidir: “nós talvez sejamos

índios, mas não queremos ser; de qualquer maneira, estamos virando

brancos.” A noção de “virar branco”, como se sabe, está presente em vários

mundos indígenas. Ela não quer dizer necessariamente o que nós achamos que

quer dizer; ao contrário, o que ela quer dizer é justamente um dos problemas

mais complexos com que se defrontam os antropólogos. Há todo um sistema

de pressuposições recíprocas em jogo, com pelo menos quatro orientações

típicas: virar branco, virar índio, pacificar o branco, pacificar o índio. Os brancos

“pacificam” os índios , os “índios” pacificam os brancos, os índios dizem que

estão “virando branco” , há “muitos brancos” querendo virar índio. Uma

situação muito interessante. Os brancos lamentam que há vários brancos

querendo virar índio e, ao mesmo tempo, que há vários índios querendo virar

branco. Os Yanomami estão querendo virar branco, e os caboclos lá da Pedra

Furada, no sertão do Cariri ou sei lá onde, estão querendo virar índio. O mundo

está de cabeça para baixo. Os Yanomami deviam continuar a querer ser índios

(alguém precisa continuar a querer ser; alguns índios são necessários), e os

caboclos deveriam continuar a querer ser brancos, cada vez mais brancos –

cidadania.

Na verdade essas duas coisas são muito mais complicadas do que se imagina.

Os Yanomami querem virar branco, mas isso não é exatamente o que se

imagina que seja, e os caboclos lá de não sei onde querem virar índio, mas

também não é como se imagina que eles querem que seja. Cabe a nós,

antropólogos, ver toda a complexidade que está por trás de assertivas tão

banais como “nós estamos virando branco.” Esse é um discurso comum em

muitas comunidades indígenas: “nós estamos virando branco”, “os índios estão

acabando”. O que parece, entretanto, é que não se acaba nunca de virar

branco; e que os índios não acabam de acabar; é preciso continuar a ser índio

para poder se continuar a virar branco. E parece também que virar branco à

moda dos índios não é exatamente a mesma coisa que virar índio à moda dos

brancos. Até que se vire. Mas aí, como se sabe, aquilo que se virou vira outra coisa.


Enfim, retomando: “deve” haver uma orientação positiva e ativa do grupo em

relação aos produtos característicos da vida com unitária. Rituais, mitos,

configurações relacionais mais ou menos reificadas, a própria comunidade

enquanto ponto de orientação, pólo de territorialização, e assim por diante. Em

vista dos processos de esmigalhamento antropológico associados à situação

evocada no item anterior (reduções, descimentos, escravização, catequização

etc.), tais discursos e práticas não são aqueles específicos da “área cultural”,

no sentido histórico-etnológico, onde hoje se acha a comunidade. Ou seja,

certos índios podem ser índios, terem uma orientação positiva e ativa em

relação ao fundo cultural ameríndio, mas um fundo cultural ameríndio que

remete a uma outra região “original”, simplesmente por que a deles foi

destroçada. Então, se os caboclos da Pedra Furada importam um xamã Wajãpi

para ensinar toré, qual o problema? Os antigos romanos importavam

professores de grego para ensinar filosofia grega para eles, e ninguém dizia

com isso que os romanos estavam deixando de ser romanos. Ou dizia (alguns

romanos de fato diziam), mas nem por isso eles deixaram de ser romanos . Ou

deixaram. Os gregos, então, mais ainda. Mas, repito, nem por isso. Como dizia

Saussure: “o francês não vem do latim. O francês é o latim, tal qual falado hoje

em tal região da Europa.” Patrice Maniglier, autor de um admirável livro sobre

Saussure (de onde tirei a frase anterior), acrescenta: “foi de tanto falar latim [à

force de parler latin] que os galo-romanos começaram a falar francês”. E assim

por diante.


Renascimento ou invenção?

Sahlins conta uma parábola em seu livrinho Esperando Foucault, que é mais ou

menos assim: Há um lugar no planeta, no extremo ocidente, onde vive um

povo muito interessante, e que há cerca de uns seiscentos anos atrás se

achava inteiramente desprovido de cultura. Ele havia perdido toda a sua

sabedoria ancestral ao cabo de inumeráveis invasões de bárbaros, de

sucessivas catástrofes, pestes, secas, guerras, o diabo. A partir de certo

momento, porém, esse povo começou a se reinventar, criando uma cultura

artificial: começaram a imitar uma arquitetura de que só conheciam ruínas ou

em velhos escritos, faziam traduções vernáculas de textos em línguas mortas a

partir de traduções em outras línguas, tiravam conclusões delirantes,

inventavam tradições esotéricas perdidas... Como se sabe, esse processo, que um latim mal falado (isto é, o latim tal qual falado em tal ou qual região da

Europa, diria Saussure), crivado de barbarismos, praticando uma religião

semita filtrada por um equipamento conceitual tardo-grego, e assim por diante

– descobrem a literatura e a filosofia gregas via os árabes. Refiguram o mundo

grego, que não era o mundo grego (ou greco-romano) histórico, mas uma

“Antiguidade clássica” feita – como sempre – de fantasias e projeções do

presente. Erguem templos, casas, palácios imitativos, escrevem uma literatura

que se refere privilegiadamente a esse mundo, uma poesia imitando a poesia

grega, esculturas que imitam as esculturas gregas. Lêem Platão de modos

inauditos, pouquíssimos gregos, imagina-se. Enfim: inventam, e assim se

inventam. E Sahlins conclui: pois é, quando se trata dos europeus, chamamos

esse processo de Renascimento. Quando se trata dos outros, chamamos de

invenção da tradição. Alguns povos têm toda a sorte do mundo.

A terceira dimensão, enfim, é a sociopolítica – a primeira era histórica

(continuidade), a segunda era cultural (orientação positiva em relação ao fundo

cultural). Ela diz respeito à decisão, manifesta ou simplesmente presumida, da

comunidade se constituir como corpo socialmente diferenciado dentro da

comunhão nacional — para usarmos essa linguagem empolada e hipócrita.

Constituir-se como entidade socialmente diferenciada significa dar-se

autonomia para estatuir e delibera r sobre sua composição, isto é, os modos de

recrutamento e critérios de exclusão da comunidade. Estamos falando de

coisas como “governança” (perdoem a má palavra) comunitária, modalidades

de ocupação do território, regimes de intercâmbio com a sociedade

envolvente, dispositivos de reprodução material e simbólica... Os índios têm,

como diz a lei, direito a seus usos costumes e tradições. Ter direito aos usos e

costumes significa ter autonomia para se governar internamente “naquilo que

não fira os princípios fundamentais” (como se não os feríssemos, por princípio)

da constituição nacional.


Indian proud.

Essas reflexões são uma tentativa de criar uma definição a mais larga possível,

que reconheça que a resposta à questão de quem é índio cabe às comunidades

que se sentem concernidas, implicadas por ela. Não cabe ao antropólogo

definir quem é índio, cabe ao antropólogo criar condições teóricas e políticas

para permitir que as comunidades interessadas articulem sua indianidade. Nós

antropólogos não somos sequer tribunal de apelação. Um caso pitoresco que

me contam, dos caboclos da Serra de Baturité que viraram índios por conta de

uma ONG de um norueguês crivado de boas intenções e de um padre

excessivamente zeloso do Cimi, é, no meu entender, um caso marginal, no sentido estatístico e no sentido conceitual. Pois e daí?, eu diria. O que isso

prova? Se aquela comunidade, de fato, é uma invenção “do mal” (porque pode

ser uma invenção “do bem”), então paciência, vamos ver o que nós fazemos

com isso; vamos ver, sobretudo, se eles se garantem. Nós antropólogos

devíamos nos orgulhar do fato de que o Brasil de hoje está cheio de

comunidades querendo ser indígenas. E devemos nos orgulhar, entre outras

coisas, porque contribuímos para reavaliar, dar um outro valor, à noção de

“índio”. Hoje a população urbana do país, que sempre teve vergonha da

existência dos índios no Brasil, está em condições de começar a tratar com um

pouco mais de respeito a si mesma, porque, como eu disse, aqui todo mundo é

índio, exceto quem não é.


(Agosto de 2006)

domingo, 21 de junho de 2020

El comercio polos portos del Navia-Eo a mediaos del s. XIX




Enredando entre revistas vellas desas que andan pola casa, topei este exemplar da revista Entrambasauguas, editada pol Academia de la Llingua Asturiana. Este  número 8, del ano 1998 nel que aparece un artigo del historiador Benxamín Méndez (que fóra profesor nel IES de Navia), titulado El comercio polos portos del Navia-Eo del s. XIX

Neste artigo fálase del tránsito portuario rexistrado nos portos del Eo-Navia (un Eo-Navia un pouco estendido, de Ribadeo a Ḷḷuarca) nel Diccionario de Madoz. 

Méndez fálanos dúa comarca costeira con ben de actividade portuaria e industrial (fábricas de papel en Castripol e A Veiga, traballos manofactureiros del textil, os conocidos traballos del ferro, mesmo en lugares dos que non queda tanta constancia como Bual...). Fálanos da importación e exportación de sidra pol porto de Navia (sinal da producción e consumo) e dúa curiosa importación de viño andaluz. Fala del Diccionario de Madoz e das importaciois e importaciois de América e el estranxeiro (quero entender que América son as colonias españolas, non sei que países conforman el estranxeiro), non fala muito das esportaciois e importaciois doutros puntos de España (namais menciona esportacion de fécula de pataca de Ribadeo a Barcelona e del importación de ferro vasco prás ferrerías eonaviegas). Si sabemos que el comercio dábase fundamentalmente por mar, esto é, el comercio eonaviego salía hacia el norte (malia acabara en Barcelona ou nel País Vasco) non hacia el sur pola Meseta. E ese comercio marítimo era el que mantía úa actividade económica forte que hoi non esiste. Se ben é verdade que había certa relación colonial, xa que se había actividade fabril, el máis del que se esportaba eran materias primas e el máis del que se importaba eran productos manufacturados, máis caros. Cabe perguntárse tamén por qué esa producción manufactureira na nosa terra non se modernizou, pois parece que a máquina de vapor desprazou a manufactura textil eonaviega (por que non se introduz a máquina de vapor al noso textil?).

En definitiva, un artigo sobre el comercio nos portos entre Ribadeo e Ḷḷuarca que poden fernos pensar sobre as posibilidades desta terra nosa.

Transcribimos aquí el artigo tal como salíu publicado en Entrambasauguas nel 1998. Tódalas imaxes que acompañan al texto son las da revista orixinal.


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El comercio polos portos del Navia-Eo a mediaos del s. XIX.




Falar de portos mercantes nel Navia-Eo

quinta-feira, 14 de maio de 2020

El chucho de Xudas, a traición de Xesús.

Despois acercouse a Xesús e díxolle: "Salve, Maestro", e chuchoulo. Pero Xesús contestoulle: "Amigo, a que veis?"
Mateo, 26, 49

Pero todo esto sucedeu pra que se cumpliran as Escrituras dos profetas.
Mateo, 26, 56.


E el Señor Deus dixo: "Hei aquí que el home féxose como un de nós en conocemento del ben e el mal; non vaia agora alargar a súa mao e tome tamén da árbore da vida, coma dél e viva pra sempre.

Xénese, 3,2

E se Xudas,
sempre maldito,
nunca escuitado,
non chuchara a Xesús?

Non habería crucifixión,
nin volvería el Mesías
dentre os mortos.

E se Xudas,
sempre maldito,
nunca escuitado,
non chuchara a Xesús?

Non habería holocausto,
nen Cordeiro de Deus
que quitara el pecado del mundo.

Quen limparía
el pecado universal,
pecado de nacer,
pecado de vivir,
se Xudas,
sempre maldito,
nunca escuitado,
non chuchara a Xesús?

Que verdades esconde
el Evanxelio de Xudas
pra que lle señan ocultas
al home
as súas palabras, 
como oculta foi
a árbore da vida?

Vede aí,
colgado dúa soga,
al home que,
cun chucho,
fexo salva
á Humanidade.